Eu fotografo gastronomia (meu maior conflito atualmente), e um dos meus clientes é a revista Prazeres da Mesa.
Quando comecei a fotografar pra eles, em outubro de 2011, eu comia de tudo: carne de todos os bichos, leite, mel, queijos, até me gabei por ter encontrado em Paris o melhor brioche de foie-gras do universo.
Nesta época, tudo o que eu olhava e comia era associado simplesmente à "ingredientes". Nada além disso.
E aí meu mundo virou de cabeça pra baixo quando naquela noite eu caí sem querer na página que falava sobre os testes em animais feitos pela indústria tabagista, um dos primeiros posts deste blog sem leitores. Desde esse dia, minha vida virou do avesso, eu virei do avesso e o mundo todo virou do avesso.
No mesmo período, recebi a revista em casa. Matéria de capa:
ESPECIAL CARNE - O beabá do churrasco perfeito e os preparos corretos para cada corte
Com aquele frisson de todo iniciante (no meu caso iniciante no veganismo), fui ler a revista e na página 26, o artigo "Orgulho Carnívoro", de Josimar Melo, me chamou atenção. Reproduzo aqui alguns trechos:
"Não foi por acaso que o homem se firmou como onívoro, por mais que os vegetarianos se coloquem no direito de determinar que a natureza está errada"
"...criaram até teorias que acusam os carnívoros de uma arrogância atroz por se julgarem uma espécie acima das outras. De minha parte, acho que o radicalismo vegetariano, sim, é "especista" (um termo deles), por se colocar no lugar de Deus e querer mudar a organização da natureza que, do ponto de vista alimentar, inclui a existência de espécies que se alimentam de outras."
"Livros como o de Richard Wrangham, Pegando Fogo, demonstram como o ser humano não se teria desenvolvido sem o consumo de proteínas animais cozidas (sim, não basta carne, tem que ser cozida...: a raw food também nos teria impedido de ter a capacidade de raciocínio que hoje temos...)"
"...não deixo de observar...a pobreza gastronômica do vegetarianismo...restaurantes vegetarianos costumam ser tediosos e repetitivos: está na hora de fazer deles também templos gourmets..."
"...a opção carnívora não deveria implicar, necessariamente, impor sofrimento aos animais...Muitos países já têm exigências legais para que o abate dos animais siga métodos que impeçam seu sofrimento...O mais incrível é que porcos, bois e peixes abatidos sem sofrimento produzem carnes melhores para o consumo..."
Eu morro de medo de virar ecochata (tenho tendências ao exagero, então tudo indica que serei), mas eu não podia, como leitora, ler tanto clichê na maior revista de gastronomia brasileira, incluindo o famigerado "se colocar no lugar de Deus". Que canseira! Na hora escrevi um e-mail para a revista. E hoje, acabo de receber meu exemplar com a minha carta publicada na página 16, sob o título "Vegetarianismo e suas discussões":
No texto "Orgulho Carnívoro", da coluna Bom de Mesa (edição 108, agosto de 2012), Josimar Melo acusa os vegetarianos de se colocarem no lugar de Deus, mas age com a mesma arrogância ao falar em nome da natureza. Ele poderia aproveitar o espaço de uma revista do porte da Prazeres da Mesa para iniciar um importante e corajoso debate sobre as práticas da indústria animal. Não precisa ser vegetariano para gostar de animais, certo? Fora isso, vegetarianos e onívoros não entrarão em acordo no que diz respeito ao consumo de produtos de origem animal, e cada grupo tem o direito de decidir o que consumir. Mas ambos poderiam somar forças para cobrar desta indústria bilionária o bem-estar do animal em vida, e não somente "garantir um abate sem sofrimento", como cita Josimar. Chefs, professores de gastronomia, alunos e entusiastas deveriam fazer questão de conhecer, do início ao fim do processo, as práticas da maioria das granjas, fazendas e matadouros que abastecem suas geladeiras, não só para saber o que servem aos seus clientes, mas para entender o que apoiam financeiramente. Vegetariano ou não, ninguém ficaria indiferente. O gosto e o cheiro dos produtos de origem animal são maravilhosos, disso ninguém - nem o mais radical dos veganos - discorda. Mas, já que somos tão cultos, sofisticados e apreciadores das boas coisas da vida, não seria razoável consumir exclusivamente produtos éticos? Ou a cegueira voluntária nos cai bem? No mais, concordo com Josimar em um único quesito: restaurantes vegetarianos são, em sua maioria, entediantes e repetitivos. Atenção cozinheiros de mente aberta: existe um grande nicho de mercado que quer gastar dinheiro e não tem onde!"
Eu não tenho autoridade nenhuma, nem entendo nada ainda do veganismo, mas peraí, ficar nessa apontação de dedo, na minha opinião, é exatamente o que faz com que ninguém tenha saco pra 5 minutos de conversa sobre esse assunto. E o assunto em questão são as barbáries cometidas dentro de granjas, abatedouros, fazendas, etc. Não interessa o que eu acho, não interessa o que o Sr. Josimar acha. O que interessa é que não existe lei nem fiscalização que garanta minimamente o bem-estar do animal. O que interessa é que o consumidor não sabe como o bife vai parar no prato dele. O que interessa é o abuso ao animal, que é tratado como lixo e depois vendido caro para os consumidores por uma indústria bilionária, que entope o bicho de hormônios, que poderia explorar o animal de maneira menos nazista, já que esta exploração não tem data para acabar. Continuaria sendo uma injustiça, mas como não acredito num mundo 100% vegano, que os campos de concentração animal tenham espaço, luz e vento. Que os impostos sejam altos pra essa indústria podre de rica e que desmata sem dó, consome água sem piedade, aprisiona, escraviza, tortura, mata e vende caro. Acho que a galera da gastronomia poderia influenciar as pessoas e cobrar mais da indústria. Eles têm visibilidade, influenciam e inspiram muita gente. Eu sinto falta deste debate nas revistas de gastronomia, e nunca vi nenhum (imagino que a pauta afastaria 99% dos anunciantes e patrocinadores).
Já que o homem nunca vai parar de explorar animais, que tenha a decência de permitir que estes vivam com um mínimo de dignidade a vida miserável que lhes é imposta. Que a debicagem seja proibida. Que as granjas se virem para manter as galinhas fora de gaiolas, em espaço decente, que tenha ventilação, luz solar e que elas cisquem. Que o leite seja produzido de maneira que as vacas não caiam duras de exaustão. Que a indústria faça testes in vitro. E que a turma da cozinha, que anda por demais glamourizada, entre na roda e fale mais sobre isso.
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24/05/2013
Hoje, 8 meses depois de escrever o texto acima, concluo: veganizei de vez.
Impossível defender uma exploração mais "confortável".
Luz, espaço e vento? Tava esperando muito pouco da indústria. Eu acho que uma hora há de haver uma lei que simplesmente proíba criar para matar.
Mas eu estava no começo. Como o veganismo muda a gente!